Mini conto #6: Depois de ter vivido o obvio utópico
Separou o rosto do dela e viu que ela ainda estava de olhos fechados. Havia claramente dois sorrisos bobos pairando no ar e ele sabia que possivelmente era o dono de um deles. Aquele era um primeiro beijo e ele já tinha aprendido com o tempo que primeiros beijos davam uma das melhores sensações que ele tinha na vida (e isso num universo pessoal de competição muito complexo e que envolvia sensações tão díspares quanto pizza de shimeji recém-saída do forno, almoço de família, elogio de chefe do chefe e reencontro de amigos que moram longe).
Ele gostava de primeiros beijos por várias razões. Primeiro pela idéia óbvia de êxito: você quer beijar alguém e você consegue. E isso, levando em conta todas as intricadas situações e mecanismos envolvidos, é sempre uma vitória, seja beijando aquela garota por quem você é apaixonado desde garoto ou a menina bonita que você encontrou numa festa esquisita onde seus amigos te levaram e cujo nome você dificilmente vai lembrar no outro dia (seja o da garota ou o da festa). Depois pelo sentido de mudança de status que existe no fato de construir alguma coisa, algum tipo de relação com as pessoas. Não importava se iria durar uma hora, uma noite ou uma vida, beijar alguém era sempre o começo de alguma coisa, já que aquela pessoa iria passar a fazer parte de um grupo bem específico que existia na cabeça dele, a de garotas que ele já beijou, totalmente diferente do grupo das garotas que ele não beijou, as que ele gostaria de ter beijado e as que ele nunca beijaria.
Existia também a novidade, a exploração. Ainda que ele não acreditasse realmente na existência de primeiros beijos ruins (critérios baixos, talvez?) ele sabia que cada beijo era diferente do outro. Desde o primeiro primeiro beijo, tímido, sem língua, e no qual ele tinha certeza que tinha feito tudo errado até o segundo, que tinha doído (possivelmente porque dessa vez ela tinha feito tudo errado. e talvez fosse culpa do aparelho também) até os outros primeiros, cada um de um jeito, cada um específico e guardado na cabeça dele por alguma razão. Seja um gosto de menta, um gosto de vodca, um gosto de cigarro, uma mordida que foi difícil de explicar pra quem viu a marca. Ele se lembrava de cada primeiro beijo, ainda que tivesse uma grande dificuldade pra lembrar dos últimos (talvez porque nunca prestasse atenção de verdade se um beijo era o último ou não)
E quando ela segurou a mão dele e perguntou se estava tudo bem ele disse que sim, claro. E se concentrou em todos os outros beijos. E na semana seguinte, enquanto eles se beijavam de novo, dessa vez num barzinho, tudo ia bem. E no mês seguinte, e dois meses depois, enquanto eles estavam num restaurante. Mas seis meses depois ele já estava sentado num outro bar, com outra garota. E quando separou o rosto do rosto dela notou que ela ainda estava de olhos fechados e que havia dois sorrisos bobos pairando no ar. Possivelmente porque ele gostava demais de primeiros beijos.