Ilha da tentação: o reality cujo prêmio é um chifre

Shoegayzer
5 min readDec 10, 2024

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Uma coisa que sempre me fascinou quando se trata de reality shows é a relação custo benefício que cada um deles oferece, essa proporção um tanto quanto variável entre o que o participante pode ganhar com a sua participação e quais os riscos que ele corre pelo ato de participar.

Num reality estilo caça-talentos, por exemplo, seja um “The Voice”, “Masterchef” ou “Guerra Culinária”, o programa coreano da Netflix onde são 100 cozinheiros competindo e alguns são eliminados antes mesmo que você registre mentalmente a presença deles, a relação é mais ou menos clara. Você acha que é bom numa coisa e, em troca da oportunidade de ser reconhecido por esse talento, você vai se expor a um certo grau de rejeição pública, que pode ir desde um jurado simpático dizendo que você é ótimo, mas só pode escolher uma pessoa, até o Gordon Ramsay colocando sua cabeça entre duas fatias de pão e dizendo que você é um sanduíche de idiota.

Claro que hoje em dia, na fase que vivemos das redes sociais, alguém vai vasculhar a sua vida até se você participar de um reboot das “Olimpíadas do Faustão”, mas em tese esse tipo de programa, ainda que vá explorar algumas questões pessoais do participante, tende a oferecer um nível maior de destaque pras aptidões da pessoa e pra competição de talentos que serve de premissa pro reality. Ou seja, se você tiver um drama pessoal vai ser ótimo, mas ainda assim você vai precisar cantar, cozinhar, algo do gênero.

A próxima etapa seriam os realities de votação popular ou do tipo “resta um”, em que o usuário está lá não por um talento específico ou para competir por uma oportunidade profissional/reconhecimento em seu campo, mas sim para disputar com outras pessoas mais ou menos aleatórias um prêmio em dinheiro. Como num “Big Brother” da vida, acompanhamos não apenas a pessoa competindo numa série de atividades, mas grande parte do dia dela e suas interações com os outros participantes, com um foco bem maior na sua vida pessoal e nos relacionamentos.

Ou seja, ainda que seja importante vencer provas, que seja legal se dar bem com os outros participantes, o que vai realmente decidir as coisas é se o pessoal em casa gosta ou não de você. E exatamente por isso o seu volume de exposição pessoal vai ser bem mais alto, aumentando também os riscos que o participante corre e o volume de escrutínio que ele recebe, ainda que normalmente a premiação seja alta e as possibilidades de geração de renda além da premiação sejam grandes também.

Por fim existe uma outra categoria de reality, que é a que mais tem me fascinado, que são os realities de namoro. Neles existe uma profunda exposição pessoal, já que bem, você está ali pra conseguir um relacionamento e poucas coisas são mais pessoais do que isso, mas normalmente não existe uma grande recompensa financeira — às vezes uma festa de casamento, uns brindes — porque o relacionamento já seria a recompensa em si.

Se formos ser o menos cínicos possíveis e acreditar que essas pessoas estão ali realmente em busca do amor e não apenas porque querem virar influencers, o que você tem são seres humanos que querem tanto se apaixonar, que querem tanto viver um sentimento, preencher esse espaço emocional em suas vidas, que estão sim dispostos a ter sua intimidade devassada e alguns de seus momentos mais lamentáveis exibidos para milhões de pessoas se esse for o preço a ser pago.

E é depois disso, depois dessa verdadeira singularidade da relação entre exposição e recompensa, que reside o programa “Ilha da Sedução”, um reality onde quatro casais, de maneira voluntária, vão para uma ilha, onde são separados e colocados em duas casas, uma delas cheia de mulheres que estão dispostas a qualquer apelação para transar com o cara, e outra composta por homens que farão uso dos mais incríveis papinhos para seduzir a mulher.

Não há prêmio em dinheiro, não existem provas a serem disputadas, existe apenas você numa relação monogâmica, chegando com sua namorada numa ilha, e cada um indo para uma casa onde a única missão dos outros participantes é sabotar, minar e prejudicar o seu relacionamento, usando das mais variadas técnicas, que vão desde as abordagens mais físicas, com roçadas e lambidas, até a mais intensa guerrilha psicológica, com gente discutindo a relação depois de dois dias.

Não que não exista um regulamento, é claro, 100% criado visando facilitar a traição e proporcionar o máximo possível de transtorno psicológico. Cada casal, ao entrar, define três “regras” que não podem ser quebradas, que podem ir desde “não pode se apaixonar” até “não pode ingerir bebida usando o umbigo de outra pessoa como tacinha”, e se alguma dessas regras for quebrada em uma das casas, uma sirene irá disparar na outra, sem nenhuma informação sobre quem fez o que ou onde.

Além disso, existem também as “fogueiras”, momentos onde os apresentadores — Flávia Alessandra e Otaviano Costa — apresentam para cada pessoa imagens descontextualizadas de seu parceiro na outra casa, quase sempre editadas de maneira a maximizar o clima de sensualidade e seguidas de comentários naquela pegada “ah, eu não deixava! ihhhhhh olha o edredon mexendo, olha lá!” ou “e aí, me fala o quanto isso te magoou? foi muito? foi bastante? você quer chorar?”. Sem contar as situações em que, sem motivo aparente, Flávia e Otaviano apenas dizem “dessa vez não vou te mostrar nada”, dando a entender que seu parceiro teria cometido atrocidades tão graves, peripécias tão rocambolescas, que as câmeras apenas se recusaram a registrar esse nível de baixaria.

E aí você pode pensar “ah, mas é só colocar pessoas não-monogâmicas, pessoas bem resolvidas emocionalmente, ou mesmo pessoas que definam regras que sejam viáveis de cumprir”. Mas da mesma maneira que o Batman não pode apenas fazer terapia e doar o dinheiro dele, porque não teria história, a “Ilha da Tentação” fez questão de escolher alguns dos mais incríveis e instáveis personagens possíveis, indo desde o homem que traiu inúmeras vezes a namorada mas começou a socar paredes quando viu ela encostando em outro cara até o casal religioso que fez voto de castidade mas quis entrar num reality onde participantes se apresentam com frases como “sou advogada e vou colocar seu homem num regime fechado comigo”.

Então o que você tem é um pouco um estudo sobre a fragilidade do ego masculino, com todos os caras entrando com banca de pegador e colapsando de maneira absoluta quando suas parceiras se apaixonam pelos sedutores; um misto de crítica e testemunho da resiliência da monogamia na sociedade contemporânea, já que pra muita gente ali o sistema não parece estar funcionando, mas na maior parte dos casos ele vence no final; mas acima de tudo um grande reflexo do quanto a carreira de influencer se tornou a principal aposta para grande parte das pessoas, mesmo que pra isso elas precisem aparecer num serviço de streaming, ao lado do Otaviano Costa, chorando enquanto a esposa lambe o mamilo de um professor de lambaeróbica bem mais gostoso que elas jamais irão ser.

Não tem como negar que vivemos tempos muito interessantes.

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Written by Shoegayzer

Quando eu era mais novo um professor disse que eu escrevia bem. Até hoje estamos lidando com as consequências desse mal-entendido.

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