Mais algumas recentes adições ao guia cada vez mais pessoal de desconfortos cotidianos

Shoegayzer
3 min readMay 30, 2020

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#Você não lida bem com elogios, então sua primeira reação é dizer que não foi nada. “Não foi nada, que isso”, você diz. A pessoa insiste e você tenta dizer que não foi algo especial, nada de mais. “Você faria igual, sério, foi bem ok”. A pessoa não deixa quieto e diz que não tem nada de ok, ela nunca faria algo assim, foi bacana mesmo. “Que isso, é você sendo gentil, certeza que tem um monte de gente que faria melhor, claro”. A pessoa definitivamente gostou e diz que não, cara, melhor que ela já viu na vida, foi espetacular mesmo. “Mas foi na sorte, sabe? Tipo, eu não consigo sempre fazer assim, né?”. Mas o cara te acha um gênio, ele gostou mesmo, ele curtiu muito. “Não, mas você não tem ideia, esse saiu bom, você gostou, mas o resto? Pô, faço muita merda, é que você me viu numa hora boa, sabe? Assim, uma em um milhão”. Mas o cara não pára, ele diz que tá lindo, ele fala que tá sensacional, ele quer te dar um abraço. E então você diz que não. Que não é assim. Que você não é tão bom. Que é tudo uma farsa. Que você não faz aquilo tão bem, que você não é um bom profissional, não é um bom filho, que queria ser um amigo melhor, que lutou por 17 anos e é faixa preta de karatê mas não se sente seguro nem pra tentar um chute mais alto, que as vezes cospe quando fala, que não consegue mais viver essa mentira e quando você tá começando a mencionar que chorou logo após a sua primeira vez o cara já foi embora e bem, como eu tava dizendo, você não lida bem com elogios.

#Você está no bar. O chopp corre entre as mesas como as profecias diziam que o leite e o mel correriam pelo chão da terra prometida, se leite e mel tivessem colarinho. Você está distraído por uma porção de batata com cheddar especialmente caprichada no bacon quando ela aparece. Ela tem um folheto, ela é de uma organização, ela quer a sua contribuição. Você explica que não tem dinheiro, só usa Mastercard, que não tá com tempo, parou só pra lanchar, que não entende da causa, entende apenas do prazer do caldinho da batata com cheddar caprichada no bacon. Ela argumenta que precisa de pouco, você diz que não tem nada, ela fala que é pra uma boa causa, você diz que nunca questionou isso, ela fala que todo mundo tá ajudando, você diz “que bom”. Aí ela olha nos seus olhos e diz pausadamente que entende, que existem pessoas pra quem um chopp é mais importante do que uma criança doente passando necessidade, que ela entende você não ter dinheiro pra ajudar alguém que nunca vai ver a vida adulta, que é natural você não ter tempo pra quem pode não ter mais tempo nenhum. Você olha pro chão, dá pra ela os cinco reais que tinha separado pro Uber. O gosto da batata agora não é mais o mesmo e o bacon parece ter sido retirado de um grande porco chamado traição.

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Written by Shoegayzer

Quando eu era mais novo um professor disse que eu escrevia bem. Até hoje estamos lidando com as consequências desse mal-entendido.

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