Mini conto #7: Mary Marvel

Shoegayzer
3 min readMay 9, 2020

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Nós dois estávamos sentados na cama, cada um na sua casa, e ela tinha acabado de contar que estava triste. Ansiedade até o pescoço, se lamentava dos seus problemas enquanto ouvia as pontas soltas dos meus, meio fazendo companhia, meio só resmungando, meio fazendo nada. Ela como sempre, do nada, mudou de assunto, selecionou alguma música ruim e mandou pra mim, acompanhado de um emoji que ela costuma usar. Eu mandei o emoji de volta e ela, usando o seu artifício confrontador, me perguntou “o quê?”.

Minha primeira reação foi dizer um “você é linda, sabia?”. Primeiro porque era verdade, ela era sim linda. Os olhos dela me desarmavam, o sorriso dela me deixava a 5 cm do chão, o jeito como o cabelo dela caia na testa mexia com sentimentos que eu nem sabia que tinha e possivelmente relacionamentos duradouros já tinham começado baseados em menos afeto e atração do que eu sentia pelo lóbulo esquerdo da orelha dela, num dia em que ela achava que estava “desarrumada e sem graça”, tendo dormido mal ou coisa assim.

Mas achei que um “linda” não seria certo, por conta das implicações. Afinal, se uma garota ouve um “linda” ela acaba lendo naquilo uma mensagem implícita de que a aparência dela está sendo filtrada pelos sentimentos dele, ou seja, é um “você é linda porque eu gosto de você”. O que definitivamente não era verdade. Não que eu não gostasse dela, eu gostava muito, mas eu queria deixar claro que ela era linda como 0 kelvin é frio, o primeiro disco do Arctic Monkeys é o melhor e Mogo é o melhor Lanterna Verde: não era uma opinião, era uma constatação factual, fatal, quase científica. Naquele momento eu queria explicar, mas não soube, que ela seria linda pra um telescópio da NASA, para um visitante alienígena, pra um canoísta maori ou para um observador situado num ponto O, localizado na margem de um rio e que precisa determinar sua distância até um ponto P, localizado na outra margem, sem atravessar o rio. Lógico feito trigonometria.

Pensei em dizer que ela me fazia feliz. Que depois dela eu tinha tido contato com alguns níveis de empolgação, diversão e satisfação que eu só havia lido nos livros, visto nos filmes e observado constrangido nos desenhos dos Ursinhos Carinhosos, com a vantagem de que ela tinha um gosto musical muito melhor e nunca precisou disparar raios coloridos em locais públicos, porque isso seria meio chato e constrangedor. Que em momentos assim, quando ela me mandava uma música, um filme ou apenas dizia que me amava, eu me sentia mais tranqüilo do que em casa, mais relaxado do que quando eu bebia, mais feliz do que quando eu fazia gol de bicicleta em noite chuvosa na última queda da pelada de quarta-feira. E deus sabe que gol de bicicleta – bicicleta mesmo, não tô falando de puxeta – é um troço muito foda e se eu fiz uns dois nessa vida foi muito.

E eu pensei em dizer isso. E pensei em dizer que queria que aquilo não acabasse, que a gente devia passar mais tempo junto, que queria contrária qualquer recomendação da OMS pra poder encontrar com ela qualquer dia desses, que provavelmente nunca tinha gostado de ninguém daquele jeito e que eu realmente queria que ela se vestisse de batmoça em algum final de semana desses, ainda que esse tópico fosse totalmente não-relacionado aos assuntos anteriores e só tivesse a ver com o fato de que ela realmente ficaria muito gostosa de preto e com aquela máscara. Mary Marvel podia ser bacana também, se fosse o uniforme vermelho clássico e rolasse a sainha.

Mas quando ela chamou minha atenção de novo já não consegui dizer nada, apenas dormir sem me despedir, e pensar que vai ficar tudo bem. Amanhã a gente conversa direito…acho que as vezes existem coisas que a gente apenas não sabe como ou não pode dizer, por mais que queira.

E não, não tô falando apenas do lance da Mary Marvel.

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Written by Shoegayzer

Quando eu era mais novo um professor disse que eu escrevia bem. Até hoje estamos lidando com as consequências desse mal-entendido.

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