Mini Conto #10: Mixtape

Shoegayzer
3 min readMay 19, 2021

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Ela tinha pedido que ele fizesse uma mixtape. Pra ela. E claro, tudo nessa idéia soava pra ele, de alguma forma, muito errado. Primeiro porque ele considerava que uma mixtape não é algo que se peça. Ok, você até pode pedir um link de um álbum legal, um Full show no YouTube que goste, talvez até dinheiro emprestado, um pedaço de fígado pra transplante, quem sabe, mas não pede uma mixtape. Essa é uma dessas poucas coisas na vida que precisam ser eminentemente espontâneas, gratuitas, voluntárias, como uma declaração de amor, dançar na chuva ou correr pelado. O outro erro é que ela não tinha usado o termo mixtape, isso era coisa da cabeça dele, robgordonzice, ela tinha pedido que ele fizesse uma playlist pra ela mesmo mesmo. Uma playlist no spotify, sabe?

E ele tinha tentado. É, ele tinha tentado e tinha tentado mesmo, seriamente. Sentado em frente ao computador ele tinha olhado horas e horae de músicas, ele tinha até mesmo revirado históricos antigos, mas simplesmente sentia que não podia fazer aquilo. Não parecia natural, não parecia…certo. Não que ela não fosse uma garota legal, porque ela era. Não que ele não gostasse dela, porque ele gostava. Não tanto assim, mas gostava. Só que parecia existir algo absurdamente errado na idéia de que ela fosse ouvir uma seleção de Weezer, Nirvana e Sonic Youth feita por ele. Algo soava muito…fora de lugar ali. Não era ela que ele queria que soubesse que ele acordava com Buddy Holly e Sunday ou que ele achava que Drain You era uma obra prima ainda que Nevermind não fosse lá isso tudo. Não era com ela que ele queria dividir as opiniões dele sobre as letras do Rivers Cuomo, ou quem ele queria que ouvisse aquela playlist de andar de ônibus que ele tinha montado e que tinha Terno Rei no final pro caso de chover ou o ônibus ficar preso em trânsito. Mesmo aquelas músicas obscuras do Kid Abelha, os cds do Lupe de Lupe ou aquela demo do SLSD, realmente não soavam como algo que ele queria que ela ouvisse.

E ele entendeu que era intimidade demais. Não que ele estivesse procurando isso, mas ele até estava disposto a entrar num relacionamento sem estar apaixonado. “Paixão é uma coisa meio superestimada, sabe como é…”. Ele poderia tranquilamente beijar, apresentar pros pais, levar nas festas, viajar, talvez essas coisas todas, mas ele possivelmente nunca iria querer mostrar pra ela as músicas favoritas dele. Simplesmente ela não era a pessoa certa pra isso. Ele poderia aceitar um namoro sem paixão, mas não poderia abrir a playlist dele sem que existisse…ele não sabia direito definir o que, mas tentava evitar a palavra “amor”. Não tanto por rejeitar totalmente a idéia, mas porque a frase soaria estranha pra caralho. Pegou a discografia completa dos Red Hot Chili Peppers e colocou na playlist. Red Hot era provavelmente a resposta mais acertada: mostrava que ele gostava dela, mas deixava claro que não era especial, que ali não existia um relacionamento. Afinal, ele gostava de Red Hot, mas todo mundo gostava também. Você gravaria Red Hot para qualquer pessoa que pedisse, é um gesto quase humanitário. Aquilo não seria pessoal, não seria dele. Seria bem…seriam os Chilli Peppers e pronto.

Enviou o link da playlist e dois dias depois eles pararam de se ver. Inventou alguma desculpa, algo sobre estar saindo de um relacionamento complicado, o problema ser ele, não ela, e estar precisando se encontrar como pessoa, num mix de todas as desculpas clássicas de final de relacionamento. Sentou na frente do computador e montou uma playlist que ele gostaria que a pessoa certa ouvisse, aquela garota pra quem ele realmente mandaria a playlist de músicas dele. Pensou que talvez, mesmo após namoros, amadurecimento e coisas do tipo ele continuava ainda um pouco romântico. Se não com relacionamentos ao menos com a idéia de que se deve levar a sério uma playlist. Mas possivelmente era pura viagem dele.

E, claro, tentou não pensar em como teria sido se ela pedisse uma dica de filme.

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Written by Shoegayzer

Quando eu era mais novo um professor disse que eu escrevia bem. Até hoje estamos lidando com as consequências desse mal-entendido.

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