Mini Conto #16: Submarino
Primeiro eu tinha que esquecer o seu sorriso. Esquecer a sua boca, esquecer as covinhas do seu rosto, esquecer o jeito como a sua franja caía pela sua testa, como você prendia o cabelo atrás da orelha. Depois esquecer a sua risada, esquecer o som da sua voz, esquecer o seu jeito de cantarolar, esquecer o sotaque que você achava que tinha perdido, mas eu notava, esquecer o jeito como você piscava pra mim quando achava que ninguém estava olhando.
Depois seriam as coisas maiores. O seu jeito de encostar os pés nos meus na cama, o gosto da sua boca, a sensação da sua cabeça no meu ombro enquanto a gente assistia algum filme chato no sofá, as suas mãos debaixo da minha camisa pra se esquentar quando sentia frio. Os abraços quando a gente se encontrava, os beijos quando a gente se despedia, você apertando a minha mão quando alguém estranho passava do nosso lado na calçada.
E eu também ia ter que esquecer os eventos, claro. Desde o dia em que você bateu o carro ou a noite em que eu fiquei preso fora de casa até o primeiro beijo, o primeiro eu te amo, aquele jantar em que eu disse que a gente deveria namorar, involuntariamente fiz uma citação de star wars e você disse que se sentiu como se tivéssemos destruído a estrela da morte. Provavelmente também vou ter que esquecer os stormtroppers, o George Lucas e os filmes com o Harrison Ford.
Também temos as coisas, claro. Me livrar dos discos que você esqueceu aqui, deixar de lado os filmes que a gente viu juntos, não abrir mais os livros que tem dedicatória sua, parar de usar as camisas que você me deu. Talvez trocar o armário que você escolheu comigo, tirar os móveis da posição que você deixou. Fingir que você não tem nada a ver com a compra do guarda roupas, porque ele eu acho que não tenho dinheiro pra repor e caixas de papelão não soam muito práticas.
Então, com tudo esquecido, com tudo trocado, sem fotos suas pela casa, sem o risco de esbarrar no seu shampoo na hora do banho, sem o medo de olhar pra estante e ter uma foto sua ou abrir uma gaveta e ter uma blusa que você esqueceu, eu sinceramente achei que podia dar certo. Talvez saindo mais, passando menos tempo em casa, tentando não esbarrar com os amigos de sempre, não ir nos bares de sempre, eu achei que realmente podia funcionar.
Mas sempre tem alguma coisa, sabe? Uma música tocando ao fundo, uma reprise na televisão, uma garota no ônibus que mexe no cabelo do mesmo jeito que você. Um livro que você me deu vira filme, você aparece no storie de alguém, alguém numa mesa me pergunta por você. Você pode não acreditar, mas uma vez eu fui numa festa à fantasia e quando esbarrei com um cara vestido de Darth Vader tive que voltar pra casa e acabei assistindo Sintonia de Amor duas vezes seguidas. Não foi legal. E eu nem sabia que essa fantasia ainda fazia sucesso.
E aí eu lembro de tudo, sabe? Eu lembro da sua boca, eu lembro das covinhas do seu rosto, eu lembro do jeito como a sua franja caía pela sua testa, de como você prendia o cabelo atrás da orelha. Eu lembro da sua risada, da sua voz, do seu sotaque, das suas piscadinhas. Do seu jeito de encostar os pés nos meus, do gosto da sua boca, da sensação da sua cabeça no meu ombro. Dos abraços, dos beijos, de você segurando a minha mão.
Nessa hora dá vontade de ter tudo isso de volta. Os discos, os filmes, os livros, as camisas. Trazer de volta o armário, voltar os móveis pra posição antiga — até hoje eu tropeço na escrivaninha durante a noite — e de vez em quando, não vou mentir, eu chego quase a sentir vontade de abraçar a geladeira. Mas aí eu respiro fundo e eu penso que na verdade o que eu preciso não é lembrar e sim esquecer. E primeiro, bem, primeiro eu tenho que esquecer o seu sorriso