Mini conto #2: Adventure Comics

Shoegayzer
4 min readOct 1, 2019

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Quando ela ligou o rádio do carro a música deles estava tocando. Por um segundo a mão tremeu, ela não conseguiu apertar o botão certo, ouviu todo o refrão. Mudou de estação. Respirou fundo, abriu a janela, saiu com o carro.

No caminho a rua de sempre estava fechada, teve que pegar um desvio. Cruzou duas ruas que não conhecia muito bem e quando reconheceu o caminho outra vez estava passando na frente do bar onde eles tinham se conhecido. Acelerou um pouco mais, quase furou um sinal, colocou a mão no porta-luvas pra procurar por alguma coisa sem nem saber o que era.

Trabalho. Na entrada a Fernanda estava esperando com umas pastas, ela tentou desviar mas as duas acabaram no mesmo elevador. Ela não falou sobre ele, não perguntou, apenas cumprimentou como se não tivesse nada pra falar. As duas sorriram um pouco sem graça. O elevador pareceu demorar o dobro do tempo pra chegar no oitavo andar.

A primeira reunião da manhã era com um analista de fora e assim que ela ouviu a primeira frase viu que o cara tinha o mesmo sotaque que ele. Tentou se distrair com o celular mas mesmo ela tendo deletado todas as fotos dos dois juntos, fosse nas férias, fosse em casa, fosse com o cachorro, uma delas ainda estava lá, perdida no meio dos wallpapers. Chegou a sorrir um pouco antes de clicar e deletar.

No outdoor do outro lado da rua um anúncio de um filme que eles queriam ver. No email chegou o pedido de confirmação de presença do casamento da prima dela, eles tinha comprado junto as passagens. Quando foi procurar grafite pra lapiseira achou dentro da gaveta um livro que ele tinha emprestado pra ela. No refeitório o Luiz perguntou pra ela se o Lu ainda estava procurando algum futebol pra quinta-feira, porque tinha uma vaga no time dele. Ela disse que não sabia e bebeu o café mais rápido, quase queimou a boca.

Na hora do almoço o prato do dia no restaurante era aquele peixe que eles tinham aprendido a fazer com o programa da TV. Um cara parecido com ele sentou na mesa do lado, a moça do caixa deu de troco a bala favorita dele. Ela sempre odiou melancia, atirou a bala no lixo. Um garoto com o mesmo perfume que ele estava esperando na recepção, os resultados do jogo do time dele passavam no monitor, ela ouviu alguém chamando a Luisa Prestes de Luzinha, que era o apelido dela, quando os dois tavam juntos. Mesmo ela tendo o silenciado alguém retwittou uma publicação dele no Twitter. Ela decidiu sair pro jardim, pra fumar.

Chegando lá ela se sentou, abriu o maço, respirou fundo. Acendeu o cigarro. Deu a primeira tragada e finalmente sentiu um pouco de paz. Tocou de leve numa das plantas. Levantou a cabeça. Olhou pro céu e tudo parecia bem. Até ver uma nuvem que, ela não sabia exatamente como explicar, mas parecia ter exatamente a forma do rosto dele. Apagou o cigarro. Colocou o maço no bolso, disse pra si mesma que aquilo estava ridículo. Correu até a mesa, pegou o celular, mandou uma mensagem dizendo que estava pensando nele.

Em seu laboratório o cientista maligno Lex Luthor esfregava as mãos, enquanto pensava se não eram atitudes como esfregar as mãos que faziam com que todos pensassem que ele era um cientista maligno. Ou as tentativas de matar o Super-Homem. Ou a frequência com que ele usava robôs gigantes pra atacar a cidade. Mas o que importava é que ela tinha respondido. Alterar a programação do rádio tinha dado certo, a hipnose na Fernanda, chantagear o gerente para trocar o consultor, hackear toda a rede de telefones celulares, criar um polímero especial que alterava a imagem do outdoor durante a manhã, criar um robô igual ao Luiz, comprar o restaurante, subornar a moça do caixa, colocar no prédio aquele fungo kandoriano que emitia o mesmo perfume que ele, realizar a programação mental com palavras chave em todas as pessoas do prédio usando uma frequência microondas emitida através de um satélite localizado no lado escuro da lua. O livro ele tinha esquecido com ela mesmo. Ele gostava daquele livro. Mas tudo valia a pena se ela tinha pensado nele.

Enquanto dava os retoques na mais nova versão da sua armadura movida a kriptonita, Lex pensava se talvez a ideia de usar uma máquina para colocar o formato do próprio rosto nas nuvens não teria sido um pouco demais. Sorriu e afastou a ideia enquanto colocava mais um lançador de mísseis acima do braço biônico. “Ficaram ótimas as nuvens. Tava bem foda”, ele pensou.

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Written by Shoegayzer

Quando eu era mais novo um professor disse que eu escrevia bem. Até hoje estamos lidando com as consequências desse mal-entendido.

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