Mini Conto #8: “era primavera, numa noite de lua cheia, e você vestia azul”

Shoegayzer
4 min readMay 7, 2021

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Começou como uma brincadeira. Estavam na festa de aniversário de um dos amigos dela e depois da sétima ou oitava vez que perguntaram como tinham se conhecido ele viu que não queria mais contar a história de como tinha atropelado o pug dela no parque. E pro primo dela disse que tinham se conhecido num show, ela estava caindo da grade, ia ser pisoteada pela multidão insana, e ele esticou a mão pra ajudar. Pra uma amiga falou que tinham se encontrado na saída de uma livraria, ele carregava uns livros, ela segurou a porta, tomaram um café. Pra outra amiga falou que era um segredo, nem ela sabia, mas eles tinham estudado na mesma escola, ele duas turmas acima, e sempre tinha sido apaixonado por ela, mas só agora tinha se declarado. Pra um amigo falou que tinha sido pela internet, pro cara do churrasco disse que tinha sido uma amiga em comum. Pro tio falou que ela tinha ganho ele da ex-namorada, numa partida de guitar hero, mas ele não se sentia objetificado porque era um homem moderno.

Achou que fosse ter algum problema quando ela encontrou ele explicando pra priminha dela que tinham se conhecido quando ele trabalhava como mercenário junto com um homem-urso e foi contratado pra levar um velho e um moleque pra um lugar chamado Alderaan, mas ela simplesmente não conseguiu ficar nervosa, ainda mais quando ele tentou ensinar a garotinha a imitar o R2-D2.

Com o tempo ela entrou na brincadeira e em menos de dois anos eles já tinham se conhecido em bares, viagens, batizados, circuncisões, filas de banco, acidentes de trânsito e boates de strip-tease — numa delas ele se apresentava com o nome de Billy Blanco. Dependendo do quão desconhecida fosse a pessoa ou o quão longe de casa eles estivessem, ela acabava se tornando até mais ousada do que ele, como nas férias no Nordeste em que ele era um guarda-costas robô enviado do futuro, o final de semana na casa dos tios dela em que ela era na verdade um clone da verdadeira Luciana, que estava em poder do projeto Cadmus e até mesmo naquela viagem de natal, quando ela descobriu que alguns policiais não acharam realmente engraçada a ideia de que eles não se conheciam e ele na verdade era um terrorista que tinha sequestrado os pais dela.

E virou a brincadeira interna deles, a mais interna de todas. Mais do que o fato de que ele não sabia piscar, mais do que ela comer primeiro o recheio da bolacha, mais do que a vez em que eles entraram na festa de casamento errada, além de ser um passatempo para aquelas tardes vazias de sábado, em que um completava a frase do outro, deixando a origem do namoro mais e mais complicada — “a gente se conheceu em…” — “Varsóvia,1989”– “era primavera, numa noite de lua cheia, e você vestia azul” — “89…então era uma fralda azul, certo? ”.

Então quando o porteiro do prédio dela perguntou como eles se conheceram a primeira idéia dele foi inventar uma história. Falar que ele tinha um bar na África e ela tinha ajudado na resistência durante uma guerra, contar que ela era uma agente secreta de Israel, mencionar que tinham se conhecido numa escola pra superdotados comandada por um careca numa cadeira de rodas. Mas depois da briga, depois do que ela tinha dito, do que eles tinham gritado, dela ter falado que daquela vez era pra nunca mais, talvez a brincadeira tivesse perdido a graça.

“Então, seu Alberto, eu tava no parque e atropelei o pug dela. o Maurício, aquele pretinho que ela tinha, sabe?” — “ahh…o que latia engraçado, sei, sei…e foi só isso?”

Mas antes que ele conseguisse responder o “é…só isso…” que estava se preparando para dizer, uma voz atrás dele completou a história. “Não, claro que não foi só isso. Na verdade, ele matou o mau-mau, sabe? Mas depois a gente subiu com ele até aqui e usando os fios da torradeira e um pedaço do ferro de passar fizemos um desfibrilador e trouxemos ele de volta do mundo dos mortos. Daí ele latir fino e tudo mais. Foi o choque de chegar no céu dos pugs, sabe? Muda um cãozinho”.

Ela estava ainda de short e camiseta, parada na escada, abrindo um sorriso, mas ainda esfregando os olhos pelo que tinha chorado antes. Esticou a mão de um jeito meio tímido e ele se levantou na direção dela. Sorriu e perguntou, fazendo a cara mais séria que conseguia “eu devo ir com você se eu quiser viver? ” E ela deu um soco no ombro dele seguido de uma “porra, menino, não força o momento, sério”. Ele sorriu e subiu, apertando firme a mão dela enquanto iam pela escada. Talvez as coisas não fossem tão ruins. Aquilo não ia ter acabado enquanto eles ainda quisessem se conhecer de novo.

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Written by Shoegayzer

Quando eu era mais novo um professor disse que eu escrevia bem. Até hoje estamos lidando com as consequências desse mal-entendido.

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