Novas aventuras no mundo da repetição silábica

Shoegayzer
4 min readOct 13, 2019

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David Brazil, o homem que elevou a barra do quão longe um gago pode ir na nossa sociedade

Por mais que muita gente imagine isso, os piores momentos pra ser gago não são as situações óbvias como apresentar coisas em públicos ou contar uma história longa pra um grupo de amigos, por exemplo.

Não que não seja horrível apresentar coisas, claro. Existe o nervosismo, existe a tensão, existe a frustração constante de praticar em casa e sair tudo perfeito mas aí lembrar que em casa você tá sozinho e você não é gago falando sozinho então óbvio que ia sair perfeito. Mas nesse tipo de situação existe sempre o consolo de que, bem, não tem o que fazer, você tá ali obrigado, ninguém vai te deixar apresentar seu TCC digitando as palavras praquela voz do Google ler, então se não vai na boa vai ter que ir sem ser na boa mesmo, eles que reservem a sala pelo dobro de tempo.

E não que contar qualquer história não seja frustrante também. O óbvio olhar de impaciência das pessoas quando você começa a falar, as variadas tentativas de completar a sua frase sem sucesso — o que perturba o gago não é você tentar completar a frase dele, é você tentar e errar — e o fato de que não existe narrativa tão épica que não possa ter seu momento assassinado quando ao invés da frase final você fica só falando “éééééé” porque o resto apenas não sai. Mas você se meteu naquilo voluntariamente, você decidiu fazer, seus neurônios tiveram tempo de um olhar pro outro e dizer “lá vai ele, hein, vai tentar falar de novo”.

Outro problema: o gago na ficção é tão gago que quando as pessoas conhecem um gago real elas ficam meio frustradas

E claro que existem várias outras experiências que parecem bem ruins e realmente são, desde o conceito do Spoleto como um todo — pense como um gago se sente tendo que escolher e falar rapidamente variados nomes de ingredientes tendo na sua frente um cozinheiro ansioso e atrás de si uma fila de pessoas com fome também bastante ansiosas — até brigas de casal em que você na hora só ouve, respira fundo e pede pra responder tudo por e-mail depois porque ali não vai rolar.

Mas terrível, terrível mesmo, é quando você, por exemplo, por não ver que uma pessoa está chegando, fecha na cara dela, pelo lado de fora, um portão que só abre pelo lado de dentro, e aí você decide pedir desculpas e a primeira palavra desliza, a segunda palavra sai, mas aí a terceira trava e ela trava mesmo e está chovendo e o cara te olha do outro lado da porta que você fechou e você olha pra ele mas a palavra não sai e ele começa a parecer confuso porque você apenas não continua a frase e vocês dois estão na chuva e você fica mais ansioso e obviamente cada vez mais travado e ele continua te olhando porque você sabe que não vai dizer nada de importante, era apenas um pedido de desculpas mas ele não sabe, ele tá esperando pra saber, e a chuva continua caindo e você está batendo com o pezinho no chão numa tentativa de fazer a palavra sair mas ela não sai e ele continua te olhando e continua chovendo e vocês tão os dois debaixo da chuva presos numa cilada mútua de educação, porque você poderia apenas ido embora como tanta gente que fecha a porta na cara dos outros e vai embora e ele poderia apenas ter ido embora como tanta gente que deixa os outros falando sozinhos e vai embora e você começa a frase de novo mas trava na mesma palavra e parece que faz dias que vocês dois estão ali e a culpa obviamente é sua porque você teve todas as chances de apenas ir embora mas você começou uma frase e você tem medo de ir embora no meio da frase e parecer maluco mas uma pessoa que trava dessa forma no meio de uma frase também não passa uma sensação muito normal e você começa outra vez a frase e o cara parece 50% preocupado e 50% irritado e você sente que agora a palavra vai sair mas obviamente ela não vai e você não recomeça a frase, você insiste e fica aquele eterno começo de palavra no ar, aquele som se prolongando e o cara olha pra você como se você estivesse tendo um derrame e você daí já não olha pra ele porque está olhando pro chão pra tentar reduzir a tensão de olhar pra uma pessoa que te olha como se você estivesse tendo um derrame e aí você desiste da frase elaboradinha e apenas cospe um “desculpa, fera” e dá as costas e sai caminhando e decide que vai voltar pra fono mas no final não volta porque fono é chato demais.

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Written by Shoegayzer

Quando eu era mais novo um professor disse que eu escrevia bem. Até hoje estamos lidando com as consequências desse mal-entendido.

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