O spoiler deliberado não é crime, mas quem faz isso é pior do que certos criminosos
Daí que eu estava lendo os comentários num texto meu que foi publicado na página da Santos Mil Grau e entre as já tradicionais acusações de que eu só falo do Santos na minha coluna que é especificamente sobre o Santos, esbarrei com uma imagenzinha, um pequeno print, que basicamente listava todos os principais eventos do novo filme dos Vingadores. “Tal personagem morre assim, tal personagem acontece isso, tal personagem passa por tal situação”.
Dessa vez, ao contrário do que aconteceu comigo em Guerra nas Estrelas — um dia antes da minha ida ao cinema para ver “O despertar da força” eu havia esbarrado, numa postagem sobre uma receita de frango, eu acho, com um spoiler sobre o destino de Han Solo no filme — consegui desviar o olhar antes de realmente ler as informações, registrando apenas alguns nomes e verbos esparsos, que, somados ao fato de que eu não sou exatamente uma pessoa esperta, não chegaram a realmente configurar um “spoiler”.
Mas mais do que outro exemplo para reforçar a máxima de que você nunca deve ler os comentários — não sei se “nem se for o feedback de um trabalho seu” ou “muito menos se for o feedback de um trabalho seu” — ou sintomatizar a negatividade inerente às redes sociais como um todo, essa experiência reflete um dos tipos de maldade que mais me fascinam na vida, que é a maldade mesquinha, impessoal e sem um retorno óbvio para quem a praticou.
Porque não, realmente um spoiler não é grande coisa. A pessoa não está agredindo ninguém, nem roubando nada e nem destruindo nenhum tipo de patrimônio. Após um spoiler de filme ninguém fica traumatizado ou machucado ou incapaz de exercer sua profissão, por mais que alguns fãs de Game of Thrones possam eventualmente discordar disso.
Ainda assim é possível argumentar que um spoiler causa sim um dano, ainda que ínfimo, ao impedir que você aprecie da maneira que gostaria uma obra de ficção pela qual você nutre um grande interesse. Se você gosta de um livro, se você gosta de um filme, você quer receber as informações sobre essa narrativa específica no seu ritmo e da maneira que o autor imaginou, que é através da leitura pessoal ou da observação do filme dentro da sala de cinema. Em suma, ninguém vai morrer por conta de um spoiler, mas se for possível não levar spoiler, a grande maioria das pessoas prefere.
Mas ainda que se trate desse prejuízo reduzido, ainda que um filme como “Vingadores: Endgame” possa ser visto por muitos como apenas um monte de hominho voador trocando soquinho — o que, não podemos negar, é uma descrição muito realista de qualquer filme de super-herói — existe algo na ideia do spoiler proposital e deliberado que é ainda mais cruel e maligna do que várias ações que nós consideramos criminosas.
“Então você acha legal dar spoilers de filmes?”
Primeiro porque é uma atitude mesquinha. Um spoiler causa um pequeno dano e não destrói a vida de ninguém, realmente, mas isso só torna mais baixo e até mesmo cruel o esforço de uma pessoa para realizá-lo. Quem dá um spoiler proposital de uma obra de ficção que outra pessoa está ansiosa para acompanhar está realizando uma atividade que tem como único objetivo destruir uma pequena fonte de prazer que o outro tem, numa versão simbólica de derrubar a casquinha de sorvete de uma criança ou jogar meio pacote de sal na sopa de uma simpática vovó. Dar um spoiler proposital é algo pequeno? Sim, mas existe algo de especialmente maquiavélico na decisão consciente de se esforçar para retirar de uma pessoa exatamente algo tão mínimo assim.
Ainda mais quando a recompensa é basicamente essa: a de saber que está tirando uma pequena alegria de alguém. Se você assalta uma pessoa a sua recompensa é o dinheiro, se você ultrapassa um sinal vermelho a sua recompensa é chegar mais rápido, mas no caso do spoiler proposital não existe nenhum ganho pessoal específico além de saber que está tirando algo de outra pessoa, além da satisfação de impedir um sorriso, de tornar menos significativa uma experiência que pode ser muito divertida e relaxante para o outro.
Somando a isso a impessoalidade específica do caso — a pessoa não queria especificamente me dar um spoiler, ela queria fazer isso com qualquer um que estivesse por acaso acessando aquela página — tudo se torna ainda mais baixo, já que nem é a intenção de tirar a alegria de uma pessoa específica, como um ex magoado que espalha mentiras sobre você ou uma pessoa com quem você já foi sacana e que decide que deve ser sacana de volta, mas sim a satisfação em causar algum dano para alguém, seja no nível que for, seja essa pessoa quem for.
Ou seja, um spoiler deliberado é uma ofensa mínima? Com certeza. Mas o processo cognitivo e emocional que leva uma pessoa a realizar esse tipo de atitude é ainda mais cruel e repleto de maldade do que aquele que leva à outras atitudes mais graves e que causam um volume de dano imensamente maior? Muito provavelmente.
Então ainda que eu já tenha passado por experiências desagradáveis nas mais variadas escalas, indo desde ser assaltado à mão armada até um cidadão me perseguir com um pedaço de madeira, passando por ser xingado em redes sociais por desconhecidos com avatar de mangá e conviver com colegas de trabalho que subtraíam itens da minha mesa, em termos de simples maldade e incapacidade de entender as motivações da situação, o arrombado que tentou me fazer entrar na sessão de cinema já sabendo o que iria acontecer com o Capitão América é, com certeza, quem eu queria que o Thanos fizesse desaparecer da face da Terra primeiro.