Pequeno dicionário de frustrações cognitivas

Shoegayzer
3 min readFeb 22, 2021

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#A empolgação não contagiante - E você descobriu algum seriado/livro/filme e ele é espetacular. É a série que superará sopranos, é o livro que te fez achar guerra e paz uma bula de remédio, é o filme que fez Cidadão Kane passar vergonha E você está absolutamente empolgado, desproporcionalmente fascinado, anormalmente intoxicado de alegria, de maneira que você gostaria de dormir com aquele livro, casar com aquele filme, oferecer orgasmos múltiplos para aquele box de DVD sem nem mesmo precisar daqueles 20 minutinhos dormindo no meio porque ninguém é de ferro e você fica todo suado também então daí é sempre bacana tomar um banho. E claro, você também quer espalhar essa boa nova para o máximo de pessoas possível, sejam eles amigos, familiares, colegas de trabalho ou apenas estranhos que porventura tiverem mantido contato visual contigo no bar por mais de 3 segundos.

Mas aí você vai tentar descrever a série e por um misto de empolgação, baixa capacidade para se expressar de forma clara e uso excessivo e caótico de interrogações, o que sai é “então, é muito foda, é sobre cowboys no espaço, sabe? Tem cavalos e eles falam chinês e eles traficam carga e tem o cara que faz Castle e pô, é no espaço. E tem aquela mina do seriado do exterminador do futuro, mas essa série era meio ruim, mas é do diretor de Buffy, você gostou de vingadores, certo? E tem o pirata daquele filme de queimada com o Ben Stiller, acho esse cara foda, você precisa ver essa série. No espaço”. E aí sua amiga não apenas decide que nunca vai ver Firefly porque é um globo rural futurista [no espaço] como te pergunta se você não devia maneirar no café. Mas você nem bebe café, complicada a vida.

#A necessidade de se justificar para estranhos- Começa como um recurso defensivo de uma mente levemente neurótica e treinada para pensar sempre no pior — “estou comprando um gorro, vão pensar que eu vou cometer algum crime, vou dizer pro vendedor algo como ‘hahaha, estou comprando esse gorro mas não vou cometer crimes, hein?’- e com o tempo se transforma num péssimo hábito que te leva a constantemente, e sem a necessidade de nenhum tipo de pressão, oferecer a estranhos, nas mais diversas situações, informações totalmente desnecessárias sobre a sua vida. Você não sai mais cedo do trabalho, você sai mais cedo porque precisa passar no médico para ver o inchaço na gengiva; você não recusa o cinema porque tem outro compromisso, você recusa o cinema porque tem esse problema de quando fala ao telefone com a sua mãe ir só concordando com tudo que ela diz e sem saber acabou aceitando ir com ela num show do Oswaldo Montenegro e agora ta no spotify ouvindo as novas dele pra pelo menos conhecer as canções mais recentes e tal. Chato não poder cantar junto.

E isso vai acontecendo sistematicamente na sua vida, com justificativas pro guardinha na praça (“eu não fiz nada de errado, eu apenas tenho receio de policiais”), pro motorista do Uber (“eu tô te dando essa de 50 porque não tive tempo pra conseguir trocado”), pro encanador (“a torneira quebrou mas não foi culpa minha”) até chegar no fatídico dia em que você vai no Pague Menos no meio da noite pra comprar umas coisas que faltaram pra pizza e uns itens pra pipoca de amanhã e nota que chegou na frente do caixa segurando apenas um salame inteiro e um pote grande de margarina. Complicada a vida.

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Written by Shoegayzer

Quando eu era mais novo um professor disse que eu escrevia bem. Até hoje estamos lidando com as consequências desse mal-entendido.

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