Problemas práticos do romantismo teórico II

Shoegayzer
4 min readNov 24, 2019

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Como todos nós sabemos, o processo de comunicação humana é sempre algo de tortuoso. Entonações mudam o sentido de frases, sensações são às vezes complicadas demais para descrever, palavras podem ter um valor simbólico absolutamente diverso entre duas pessoas diferentes. Às vezes não sabemos o que queremos dizer, às vezes não conseguimos entender o que os outros dizem, às vezes sabemos o que queremos dizer, mas não podemos, às vezes começamos uma frase e a pessoa completa, mas ela não completa o que nós queríamos dizer e então tentamos corrigir, mas ela completa errado de novo e aí completamos a frase dela e então viramos o cão do porta-malas. Como eu disse, é um processo complicado.

Nada torna mais complicado esse processo, já naturalmente adverso, do que aplicação dele para descrever sentimentos e sensações num contexto de interação pessoal romântica. Sentimos coisas que não sabemos descrever, queremos coisas que não sabemos explicar, dizemos coisas que não saem exatamente como esperamos e adicionamos às dificuldades naturais de uma comunicação já complexa as dificuldades de um campo sentimental várias vezes confuso, cheio de incertezas e que nem nós mesmos entendemos bem (“Então, eu acho que te amo e a gente devia casar senão eu me mato. Mas sem compromisso, sabe? não tô aqui pra te pressionar”)

E nenhuma frase resume melhor a complexidade do processo de comunicação romântica, com suas verdades que são um pouco mentira, mentiras que tem bastante verdade e indiretas que têm dedicatória no final do que a boa e velha justificativa, quase sempre usada quando um dos parceiros quer levar o nascente romance para o próximo nível e tornar formal e organizado aquilo que antes era instável e recreativo, de que naquele momento a pessoa “não está pronta pra um relacionamento”.

Isso porque, por mais que ela hoje em dia tenha se tornado um clichê e seja usada como sinônimo de desculpa, ela é de uma sinceridade palpável e de uma verdade óbvia: Se alguém te diz isso é porque essa pessoa efetivamente não está pronta para um relacionamento. Não apenas pelas razões evidentes – se alguém diz que não quer estar num relacionamento essa pessoa claramente não deve estar num relacionamento – mas também pelo fato de que essa pessoa já deixou claro que aceitaria estar com você num não relacionamento, já que vocês se pegam e ela provavelmente aceitaria de bom grado continuar te pegando, desde que não precisasse mudar o status do facebook, conhecer sua avó e parar de pegar outras pessoas. Na verdade talvez ela até topasse essa parte da avó. Todo mundo adora avós. Fazem comida e tal.

Daí o rancor que surge quando você, que acabou de abrir o seu coração e dizer que queria levar o seu relacionamento para o próximo nível apenas para receber como resposta que aquela princesa ainda não está pronta para entrar no castelo, descobre que duas semanas depois ela não apenas entrou num outro castelo como conheceu a família do castelo, enche o instagram de fotos do castelo e já tá cogitando casar com o castelo de papel passado. Oras, se ela não estava pronta pra um relacionamento comigo como ela pode estar pronta pra isso com ele? O problema sou eu? O que tem de errado comigo? Por que ela mentiu?

E o que oferece o grau implícito de mentira na frase é exatamente a parte que sempre fica de fora, o “não me sinto pronto pra um relacionamento… com você”. Isso porque, por mais que achemos que estamos sendo sinceros e dando a resposta mais honesta possível diante da pergunta “você não acha que a gente devia namorar?” nós naturalmente reagimos de maneiras diferentes diante de pessoas diferentes em momentos diferentes. Homens que querem “curtir a vida de solteiro” casariam na hora se fosse a garota de jogos vorazes, mulheres que estão se dedicando ao trabalho colocariam fogo em cadeiras no escritório se quem pedisse fosse o Michael Fassbender.

Às vezes a garota que não está pronta pra namorar com você hoje vai estar totalmente disposta a namorar com outro cara amanhã, da mesma forma que se você encontrasse com a sua namorada da escola hoje, numa situação de neutralidade e desconhecimento, você poderia preferir 30 minutos de uma surra de cinto bem dada a 5 segundos de relacionamento com ela. Relacionamentos dependem de uma combinação absurdamente sutil de timing, atuação, personalidades e coincidências, numa espécie de efeito borboleta que permite imaginar que, se você em Goiânia não estivesse namorando com o cara x em 1997, o primo dele poderia não ter saído com aquela outra menina nas férias de 2002, levando ao término de um casal de amigos meus em 2009 e a minha decisão, em 2011, de abandonar meu trabalho pra montar uma banda de indie chamada grassroot grasshoppers e hoje precisar viver de favor porque eu sou um musico horrivel.

Mais do que a comunicação confusa, mais do que as sutilezas de um processo complexo, mais do que a teorização de que para o certo não existe momento errado e para o errado não existe momento certo, o “não estou pronto(a) para um relacionamento” nos lembra de uma coisa: ainda é bem melhor ouvir isso do que “não tô pronto pra um relacionamento porque quero demais transar com várias outras pessoas”. Sério, a sensação é bem pior.

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Written by Shoegayzer

Quando eu era mais novo um professor disse que eu escrevia bem. Até hoje estamos lidando com as consequências desse mal-entendido.

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