Sobre bigode, onças e um certo senso de suspense e trauma matinal
Você estava chegando no trabalho, mais ou menos numa boa. Nesse dia não estava atrasado, nesse dia não tinha reunião, a ida pro trabalho foi tranquila e sem solavancos, era só pegar um cartão de acesso com o porteiro e pronto, dali passar pela catraca e dar uma tranquila caminhada pelos corredores até a sua mesa, o clima parecia até ameno.
Aproximou da bancada da portaria, deu aquele bom dia. O porteiro, o mais idoso dos que revezavam na portaria, respondeu bom dia. Pediu um cartão de acesso, explicou que tinha esquecido o seu, ele disse que tudo bem, você disse que saiu com pressa e com medo de se atrasar e acabou esquecendo, ele disse que tudo bem, você falou que era esquecido mesmo, ele disse que tudo bem, você agradeceu de novo, ele disse que tudo bem, você se perguntou porque sempre se explicava demais pras pessoas, imaginou o porteiro mentalizando um “tudo bem, cara, meu deus, tudo bem”. Já ia se despedir, tava dando a volta, quando ouviu a voz do porteiro te chamando. “Seu Luan, tava aqui com uma dúvida. Quanto tempo você aguenta o bigode sem tirar?”.
E sua primeira reação foi responder que você usa bigode desde a adolescência, apenas apara de tempos em tempos, ficou sem bigode no máximo duas vezes, mas quando você olhou pros olhos do porteiro, notou algo estranho. Sim, ele parecia animado, ele parecia ansioso, ele parecia curiosamente animado, curiosamente ansioso. Você tentou analisar a fisionomia, você buscou sinais, mas suas apuradas habilidades de observação só te permitiam concluir uma coisa: aquele era o porteiro. Ou alguém muito parecido. Mas provavelmente era o porteiro. E ele parecia ter feito uma piada de duplo sentido e estava querendo que você achasse que era uma pergunta sobre sua pelugem facial quando na verdade era um questionamento sobre quanto tempo você suportaria a prática da sodomia com um homem que, esse sim, possuísse pelugem facial.
E aí, como aconteceu com o personagem de Denzel Washington naquele filme sobre pilotar aviões de cabeça pra baixo, o cansaço sumiu, a tensão acabou, e o que te sobrou foi apenas o puro, simples e instintivo reflexo, só que sem as drogas pesadas e o sexo na véspera. “Pô, só te respondo se você me falar onde você escondeu a onça”. Tudo saiu numa frase só, tudo saiu com segurança, tudo saiu como um pistoleiro que dispara uma arma mais do que conhecida num duelo que ele já disputou mais de mil vezes apenas naquele pôr do sol.
A reação não foi a esperada. O porteiro parecia confuso. O porteiro na verdade parecia perplexo. “Onça? Mas…mas…que onça?”. E aí você tremeu. Você lembrou de todos os constrangimentos que suas piadas já geraram, todos os encontros que elas já prejudicaram, todos os desconfortos em eventos de família. Cada vez que você deixou sua mãe sem graça na frente de médicos, cada vez que sua ex-namorada já olhou pra você com aquele ar de “que erros eu cometi na minha vida que me levaram a esse momento?”. Cada piada que você já lançou do palco do seu coração com a esperança de que ela realizasse um lindo crowd surf nas risadas dos amigos, mas que acabou caindo no chão frio e meio gorduroso do “mas então, galera” com um baque surdo que você imagina que soe como “twhup” ou “plohff”.
Mas agora era tarde demais. Você já havia lançado a base da piada, depois da qual não havia retorno. Você não ia inventar uma história sobre uma onça, você não ia dizer que ele não entendeu direito, você não ia apenas sair correndo da portaria em direção a catraca, ainda mais porque sem o cartão de acesso você não conseguiria passar, isso provavelmente só iria piorar as coisas. Então você respirou fundo, endireitou a postura e mandou.
“Aquela pintada que eu te dei”
Por alguns segundos o porteiro apenas congelou. Uma expressão enigmática que flutuava entre a confusão e o terror percorria o rosto dele e você temeu pelo pior. Você havia falado sobre dar pintadas num idoso. Você era um perturbado. Você era um doente. Você teria que procurar um novo horário, talvez um novo emprego, talvez sair da cidade após uma matéria no jornal sobre o “pintador de idosos da cidade”. Mas aí aconteceu. O porteiro sorriu. O porteiro abriu ainda mais o sorriso. O porteiro deu gostosas gargalhadas. O porteiro gritou “AHHHH, MAS NESSE LUGAR SÓ TEM FILHO DA PUTA MESMO, EU TENTO PEGAR UM E ELE AINDA ME PEGA, SÓ TEM FILHO DA PUTA HAHAHAHAHA” e juntos vocês dois sorriram o sorriso dos bons e gargalharam as gargalhadas dos justos, como apenas dois homens adultos que fazem piadas de pré-adolescente conseguem sorrir e gargalhar.
No caminho pro portão você listou mentalmente que outras piadas desse tipo você ainda tinha — a manga, aquela chupada que você me deu, a roupa, aquela rasgada que eu te dei, e algumas variações como perguntar se a pessoa gosta de laranja e oferecer um saco pra ela chupar — e sorriu para o infinito. Aí percebeu que por alguma razão, durante todo esse processo, esqueceu de pegar o cartão de acesso e voltou pra buscar.