Sobre o terror primitivo do falo conceitual voador
Ainda que poucas pessoas costumem notar, de todos os xingamentos e praguejares existentes na língua portuguesa – uma língua rica em possibilidades de ofensas, que vão desde menções a genitais peludos como forma de extravasar raiva até informações sobre as opções vocacionais da mãe do outro como meio de ofensa – um dos mais graves, aterrorizantes e sinistros é o interiorano, comum e primariamente inocente “caralho de asa”.
Primeiro porque, ao contrário dos xingamentos e praguejares normais do nosso idioma, o caralho de asa é um dos poucos casos em que não estamos descrevendo uma situação negativa, gritando o nome de genitais, ofendendo um outro, mas sim conjurando uma entidade abstrata. Uma vagina muito peluda é algo que existe, um filho de uma garota de programa é algo real, o sêmen é uma secreção normal do corpo humano, independente de como você o chame. Mas a ideia de um falo alado é totalmente ímpar na nossa linguagem, porque é algo que não existe em nenhum reino além daquele do xingamento, é uma criatura hipotética nascida da nossa fúria, é o meio do caminho entre o “putaquepariu” e a loira do banheiro, é ao mesmo tempo um jorro de fúria e a invocação de uma criatura de um terror que só pode ser descrito como primitivo.
Isso porque o simples conceito do caralho de asa é tecido usando as mesmas fibras que constroem os mais terríveis pesadelos e os mais abjetos terrores. A ideia de um pênis que não apenas existe deslocado de um corpo humano como adquiriu capacidades próprias de locomoção, especificamente habilidades aéreas, é um conceito que, ainda que possa parecer no máximo inusitado numa primeira análise, é não apenas visualmente uma ideia das mais aterrorizantes, como gera implicações que se analisadas nos levam a um abismo de terror mais profundo do que aquele de onde saíram outros arquétipos do medo como vampiros, lobisomens, fantasmas.
Primeiro pelas implicações práticas. Um mundo onde um pênis pode sair voando por aí, tomando decisões por conta própria, se esgueirando pelas ruas, se escondendo nas sombras de florestas, é um mundo onde qualquer projeto de alegria e felicidade foi extinto, é um inferno terreno que nem a mais sinistra ficção ousou descrever. Você tá numa fila de banco, você toma uma pintada na orelha. Você tá vendo o pôr-do-sol com a sua namorada, se forma uma sombra, tem um cacete se projetando na direção de vocês. Você está no banho, agacha pra pegar uma toalha, sua vida muda pra sempre. Famílias precisam colocar telas anti-pênis em suas janelas. O conceito de camping está extinto pra sempre.
E temos também, é claro, as implicações simbólicas. O terror do caralho de asa representa o terror do nosso próprio corpo e da nossa falta de controle sobre ele, o terror da nossa própria sexualidade, o medo do homem da perda de sua masculinidade, o medo da mulher dos abusos que essa masculinidade com frequência representa. Simbolicamente o caralho de asa representa o medo de um corpo fora de controle, de uma sexualidade que dominasse a racionalidade, de um id masculino não mais contido pelas regras da sociedade, mas sim atuando em sua força máxima como entidade do caos.
Isso torna o caralho de asa, mais do que uma expressão, mais do que uma imagem mental, um personagem do medo cotidiano que bebe na fonte de todos os grandes ícones do terror, todos representantes de alguma faceta primitiva da mente humana, de algum receio que nosso verniz de evolução e civilização pode ter conseguido transformar mas nunca poderá superar.
Por isso o caralho de asa é o mais perturbador de todos os xingamentos. Porque um momento em que você está furioso a ponto de conjurar o terror primordial de um pênis que consegue se mover sozinho e acima do solo, mesmo sendo mais pesado que o ar, é o momento em que a zona entre a realidade e o pesadelo se tornou mais estreita, é o momento em que o sol da racionalidade deu lugar à noite sem fim do medo.
O caralho de asa não é um xingamento. Ele é o horror lovecraftiano disfarçado de esbarrada na porta.