Sobre quem tem ou não a terapia em dia

Shoegayzer
4 min readSep 9, 2024

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Um conceito que se tornou bem comum entre a galerinha descolada e progressista da classe média é a famosa “terapia em dia”. São as pessoas se gabando de “estar com a terapia em dia”, é geral dizendo que você só deve sair com quem “tem a terapia em dia”, são diversos alertas de que não “ter a terapia em dia” é uma das maiores red flags possíveis que você precisa reparar em outro ser humano.

E conceitualmente a ideia é bacana. Saúde mental é uma questão das mais importantes, ainda mais num país em que 86% da população sofre com algum problema nesse sentido, desde ansiedade até depressão, segundo dados da OMS. E obviamente a terapia, em suas diversas formas, é sim uma importante ferramenta, que pode levar a melhorias não apenas na própria qualidade de vida da pessoa como também na maneira como ela se relaciona com o próximo — isso sem contar com o fato de que homens são muito mais propensos a violência contra os outros e contra si mesmos, mas bem menos propensos a buscar ajuda quando se trata de saúde mental.

Mas ao mesmo tempo, como acontece com quase toda generalização, o papo da “terapia em dia” pode acabar se tornando um pouco esquisito, e pra perceber isso não é preciso nem ser o tipo de chato detalhista que vê alguém falando que “friozinho é uma delícia” e comenta “ahhh, então você é a favor das pessoas passarem frio na rua???”.

Primeiro porque terapia não é exatamente a coisa mais acessível do mundo. Nem todo mundo tem dinheiro para pagar um tratamento continuado de saúde mental e, mesmo quando esse tratamento é oferecido em gratuidade, isso não quer dizer que a pessoa necessariamente vá ter o tempo necessário ou as ferramentas/acesso para receber esse cuidado.

Com isso acaba existindo um elemento meio classista na ideia da “terapia em dia”, já que pode transmitir a falsa ideia de que só não faz terapia quem não quer e que pessoas que não fazem devem ser evitadas — o que transforma “não saia com quem não tem terapia em dia” em “não saia com quem não tem um bom plano de saúde” ou “não saia com quem trabalha 8 horas por dia e ainda precisa pegar dois ônibus pra chegar em casa”.

Mas talvez o principal problema desse discurso seja a ideia da “terapia em dia” como uma espécie de “cartela de vacinação completa” da saúde mental, que desconsidera o quão complexa pode ser a questão da terapia, de maneira prática, na vida de uma pessoa adulta, e age como se frequentar um terapeuta te imunizasse totalmente do risco de ser uma pessoa horrível.

Isso porque nada garante que, apenas por fazer terapia toda semana, você esteja realmente tendo qualquer progresso na sua saúde mental, seja porque você pode cometer atrocidades e omitir isso durante as sessões, seja porque você pode apenas ter caído com um profissional ruim, que vai validar qualquer absurdo pra manter o cliente. Isso sem contar o fato de que o progresso nesse tipo de tratamento raramente é linear, com idas e vindas, avanços, pausas e retrocessos.

Quando você soma a isso o ambiente atual em que a linguagem de terapia é utilizada para justificar as ações mais arrombadas — qualquer pessoa que te negue alguma coisa se torna “tóxica” e você pode ignorar qualquer responsabilidade dizendo que está apenas “estabelecendo limites pessoais” — e você percebe que alguém “com a terapia em dia” pode até mesmo ser bem pior do que alguém que está talvez com o nome meio sujo no Serasa dos tratamentos de saúde mental.

(Isso sem contar os perigos da ideia de achar que terapia é algo que as outras pessoas precisam fazer pra estar em condições de conviver com a gente e não uma busca pessoal por crescimento, criando um mundo em que nós somos pessoas complexas e analisadas e os outros são “malucos” que precisam “se tratar’)

Então ainda que, sim, uma pessoa atenta à própria saúde mental provavelmente vá ser mais feliz e mais fácil de se relacionar, não apenas frequentar ou não terapia está longe de ser o único fator nesse processo como, muitas vezes, por trás daquelas duas sessões por semana e de todo aquele conhecimento de terminologia da área, está uma pessoa capaz de fazer coisas bem piores do que alguém que nunca levou um corte lacaniano na vida.

E se bobear essa pessoa pode até mesmo ser você.

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Written by Shoegayzer

Quando eu era mais novo um professor disse que eu escrevia bem. Até hoje estamos lidando com as consequências desse mal-entendido.

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