Sobre redes sociais, dia dos namorados e o desprazer da felicidade alheia

Shoegayzer
4 min readJun 13, 2021

--

Não é exatamente uma revelação pra ninguém, a essa altura do campeonato, a informação de que na internet todo mundo sempre tenta parecer mais feliz, mais bem sucedido, mais bonito do que é na vida real. Esse é um assunto que já foi discutido e debatido à exaustão, sendo já uma tradição criticar o ambiente de alegria artificial de redes sociais como o Instagram, por mais que, em termos estéticos e práticos, a maioria de nós realmente prefira amigos que finjam estar felizes e plenos do que enfrentar diariamente um feed onde todos estão falando sobre seus problemas de saúde, dificuldades financeiras, traumas emocionais e exibindo as partes da parede de casa que estão com o reboco caindo — você pode não ver mas o twitter está com a mão levantada nesse momento.

E esse fenômeno resulta, como também já foi apontado, num ciclo retroalimentável de pressão para exibir felicidade. Afinal, se tudo que você vê nas suas redes sociais são pessoas felizes, bonitas e bem sucedidas, você não apenas se sente pressionado a parecer tão feliz, bonito e bem sucedido quanto elas como ainda — por mais que racionalmente possa aceitar que elas não são tão felizes, bonitas e bem sucedidas assim — acaba acreditando que não é feliz, bonito e bem sucedido o bastante.

Mas uma outra parte desse fenômeno acabou ficando bem clara pra mim durante esse último dia dos namorados, quando, como de praxe, a timeline do Instagram foi inundada por fotos simpáticas e alegres de casais, nos mais variados estágios de relacionamento, satisfação pessoal e conhecimento de como fazer foco numa câmera de telefone celular.

Fala-se muito do dia dos namorados mas pouco se discute sobre o pai de João Dória ter criado o próprio João Dória para aumentar a venda de João Dórias

Isso porque, se por um lado tínhamos várias imagens genuinamente encantadoras de vários amigos, colegas ou desconhecidos mexicanos que eu adicionei numa época em que eu estava viciado num joguinho do Facebook que acabei depois abandonando, vivendo momentos de romance com seus parceiros e parceiras, por outro lado também tínhamos várias postagens, mais ou menos rudes, mais ou menos tristes, mais ou menos desesperadas, de pessoas solteiras, indo desde longos tratados sobre como o pai de João Dória inventou o Dia dos Namorados — como se todas as outras datas não tivessem sido de alguma maneira inventadas em algum momento — até alguns textos que pareciam ameaças quase diretas, no estilo “existem namoros aqui que parecem muito felizes mas que não sobreviveriam a um print!!”.

E esse clima de hostilidade, essa intolerância cada vez maior diante da felicidade alheia se manifesta nas mais diversas formas, que vão desde as discussões na internet até as indiretas em redes sociais, passando até mesmo por certos posicionamentos políticos — conceitos como “orkutização” de redes sociais ou “rodoviarização” de aeroportos tem como raiz o mesmo tipo de desgraçamento de cabeça que certas pessoas sentem ao ver a presença e/ou felicidade de grupos que eles consideram que não tem direito a essa presença e/ou felicidade.

A vasta gama de pessoas de quem você gostava bem mais quando conhecia bem menos

Afinal, não só nunca tivemos que nos esforçar tanto pra parecer felizes pros outros como nunca tivemos que lidar com volumes tão grandes e tão presentes de felicidade alheia, seja ela real ou não. Você que é solteiro e se ressente disso precisa lidar com todas as fotos de todos os casais felizes em todas as redes sociais. Quem perdeu, não conheceu ou não fala com o pai, precisa lidar com todas as declarações de amor paterno alheias durante o dia dos pais. Pessoas que são contra a Copa do Mundo precisam lidar com todos os posts sobre futebol, memes do Neymar e derivados.

As redes sociais nos fizeram ter um contato muito mais intenso com os gostos, alegrias e realizações dos outros do que jamais esperamos, pedimos ou quisemos, e a constante comparação disso com nossos próprios gostos, alegrias e realizações, acabou deixando vários de nós um pouco mais amargos, rancorosos ou apenas putos com o que encontramos. Ou seja, sim as redes sociais permitiram que nós conhecêssemos muito mais pessoas, de maneiras muito mais intensas e com muito mais riqueza de detalhes do que jamais imaginamos ser possível. E como resultado nós acabamos descobrindo que, bem, não gostamos tanto assim delas, no geral a maior parte nos dá bastante nos nervos e nós estamos torcendo contra mesmo.

--

--

Shoegayzer
Shoegayzer

Written by Shoegayzer

Quando eu era mais novo um professor disse que eu escrevia bem. Até hoje estamos lidando com as consequências desse mal-entendido.

No responses yet